Finalmente foi publicada a norma que regulamenta o uso de células-tronco e outros produtos usados em Medicina Regenerativa, para uso clínico no Brasil.
O que é Medicina Regenerativa? A clara definição deste termo é fundamental para o desenvolvimento desta área. De acordo com Mason & Dunnill, “A medicina regenerativa substitui ou regenera células, tecidos ou órgãos humanos, para restaurar ou estabelecer a função normal” (1). Como? Através da interação de diversas áreas do conhecimento científico: biologia celular e molecular, biomateriais e nanotecnologia, engenharia de tecidos, genética, imunologia e o que mais a imaginação do pesquisador puder alcançar.
O termo “Medicina Regenerativa” foi usado pela primeira vez em um artigo de 1992 sobre administração hospitalar escrito por
Leland Kaiser. O artigo de Kaiser termina com uma série de parágrafos curtos sobre tecnologias futuras que impactarão os hospitais. Um parágrafo tinha “Medicina Regenerativa” como um título impresso em negrito e afirmava: “Um novo ramo da medicina se desenvolverá que tentará mudar o curso da doença crônica e, em muitos casos, irá regenerar sistemas orgânicos degenerados ou com falhas”.
O uso generalizado do termo entretanto é atribuído a
William A. Haseltine (fundador da Human Genome Sciences). Haseltine foi informado sobre o projeto para isolar células-tronco embrionárias humanas e células germinativas embrionárias na Geron Corporation em colaboração com pesquisadores da Universidade de Wisconsin-Madison e da Escola de Medicina Johns Hopkins. Ele reconheceu que a capacidade única dessas células de se diferenciar em todos os tipos de células do corpo humano (pluripotência) tinha o potencial de se transformar em um novo tipo de terapia regenerativa. Explicando a nova classe de terapias que essas células poderiam possibilitar, ele usou o termo “Medicina Regenerativa” da maneira que é usada hoje: “uma abordagem à terapia que emprega genes, proteínas e células humanas para crescer novamente, restaurar ou fornecer substituições mecânicas para tecidos que foram feridos por trauma, danificados por doenças ou desgastados pelo tempo e oferecem a perspectiva de curar doenças que hoje não podem ser tratadas com eficácia, incluindo aquelas relacionadas ao envelhecimento ” (2).
Na última década, houve um aumento enorme no interesse de usar terapias biológicas baseadas nos conceitos de Medicina Regenerativa, para cuidar de pacientes com lesões do sistema locomotor. Além de aliviar sintomas, a ideia é encontrar uma forma de frear a evolução da osteoartrite e outras patologias que poderiam destruir progressivamente a articulação. Nos Estados Unidos criou-se a expressão “
orthobiologics” para se referir a estas terapias biológicas. No Brasil, o termo mais usado continua sendo Medicina Regenerativa.
As terapias biológicas mais usadas em ortopedia atualmente são as que utilizam células autólogas, ou seja da própria pessoa. São exemplos bastante conhecidos o Plasma Rico em Plaquetas (PRP) e as células mesenquimais obtidas da medula óssea (BMAC) ou da gordura (Lipogens). Enquanto o uso destas terapias parece ser bastante promissor, ainda existe muito preconceito e questionamento a respeito da eficácia destas terapias. Em geral, raros procedimentos cirúrgicos praticados diariamente foram tão cobrados ou questionados quanto as técnicas de medicina regenerativa. Apesar disso, a pressão de mercado e a pressão dos pacientes tem levado ao uso clínico indiscriminado, muitas vezes em situações mal indicadas.
No Brasil, o uso de terapias biológicas é regulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Enquanto nos Estados Unidos e Europa o uso já autorizado, no Brasil aguardamos a conclusão da trilogia regulatória da ANVISA:
- RDC 214 de Fevereiro de 2018: dispõe sobre as Boas Práticas em Células Humanas para Uso Terapêutico e pesquisa clínica, e dá outras providências.
- RDC 260 de Dezembro de 2018: dispõe sobre os procedimentos e requisitos regulatórios para a realização de ensaios clínicos com produtos de terapia avançada investigacional, (RDC 260 de Dezembro de 2018)
- A terceira e última RDC ainda não foi publicada, mas foi colocada para consulta pública no segundo semestre de 2019. Prepara o lançamento em breve das normas para uso clínico e comercialização dos produtos de terapia avançada, o que permitirá finalmente o uso clínico em hospitais e consultórios.
A permissão para uso clinico de produtos de manipulação mínima, tais como o PRP e o BMAC, em países da América do Norte e Europa, resultou em um aumento brutal do uso destas terapias na área da Ortopedia e Traumatologia e principalmente na Medicina Esportiva. Em 2015 a Academia Americana de Cirurgiões Ortopedistas (AAOS) organizou um simpósio com diversos especialistas de diferentes áreas do conhecimento, chegando à conclusão de que a Medicina Regenerativa deve ser implantada progressivamente no arsenal terapêutico dos ortopedistas, mas com uma abordagem translacional fundamentada em sólidas bases científicas (Medicina Baseada em Evidências). A colaboração entre pesquisadores, agencias reguladoras e a indústria é fundamental para atingir este objetivo (3).
Apesar deste consenso, o uso indiscriminado e desordenado de terapias biológicas em consultórios médicos contrasta com a abordagem promissora que vem sendo realizada por grupos de pesquisa sérios, transformando as descobertas mais recentes nas áreas de cultura celular, biomateriais e engenharia de tecidos, em terapias inovadoras nas mais diversas especialidades médicas. Alguns produtos de terapia avançada já chegaram inclusive ao mercado após rigorosos testes e ensaios clínicos. São exemplos produtos como
MACI (Vericel, USA) e o
Spherox (Co.Don, Germany) usados para o tratamento de lesões isoladas da cartilagem e o
Invossa (Kolon Tissue Gene, South Korea), usado no tratamento da osteoartrite.
No futuro breve, será possível iniciar o uso clínico de tais produtos no Brasil, mas antes é preciso combater o preconceito e estimular o progresso e a inovação através de práticas sérias e comprovadas, com o endosso das agencias regulatórias como a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), das entidades de classe como o CFM (Conselho Federal de Medicina) e das sociedades de especialidades médicas, como a SBOT (Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia).
Autores: Alessandro R Zorzi, Ângela C M Luzo